Introdução
Há um novo fetiche rondando o planeta — não mais apenas o da mercadoria, mas o da inteligência artificial. Disfarçada de neutralidade técnica, essa nova ferramenta do meio técnico-científico-informacional assume hoje o posto de oráculo dos tempos modernos. Mas o que ela é, afinal, senão mais uma engrenagem da máquina global de produção de obediência?
Na tradição crítica que move o pensamento de Milton Santos, devemos recusar qualquer reverência acrítica à técnica. A inteligência artificial, como todas as formas tecnológicas anteriores, não nasce neutra: ela nasce sob um regime de controle. E quando a técnica é dominada pelo capital, o que se expande não é o conhecimento, mas a alienação.
A Nova Etapa do Meio Técnico-Científico-Informacional
O mundo já é profundamente moldado por um meio técnico em permanente transformação. Mas com a inteligência artificial, entramos em uma nova etapa: a técnica não apenas media a realidade — ela passa a produzir realidade. O espaço deixa de ser apenas vivido para ser calculado, monitorado, predito.
A inteligência artificial age como um mecanismo de antecipação e conformação dos comportamentos sociais. Ela coloniza o tempo ao antecipar desejos e coloniza o espaço ao padronizar usos e presenças. Ao se infiltrar nas práticas cotidianas, impõe uma lógica algorítmica sobre aquilo que outrora era espontâneo, plural, humano.
Os Dois Circuitos da Inteligência Artificial
Como afirmou Santos sobre as economias urbanas, também na IA se constroem dois circuitos:
Um circuito superior, tecnificado, corporativo, que utiliza a IA para operar mercados financeiros, governar cidades por vigilância, manipular eleições, identificar padrões de consumo, antecipar rebeliões.
Um circuito inferior, precário, onde trabalhadores uberizados são geridos por algoritmos, crianças aprendem com robôs, populações são mapeadas para controle policial — e não para inclusão cidadã.
A inteligência artificial, neste contexto, não universaliza o acesso ao saber: ela particulariza a dominação. É uma nova divisão internacional da técnica, onde os países centrais desenvolvem, e os países periféricos consomem sem controle nem propriedade.
A Alienação Algorítmica
A alienação contemporânea não se dá apenas pelo trabalho; ela se dá pela informação e pela previsibilidade. Ao transformar desejos em dados e decisões em padrões, a IA substitui a vontade pela sugestão, o pensamento pelo clique. Já não é preciso censurar ideias — basta que os algoritmos decidam o que você verá.
A sociedade informacional cria um novo tipo de massa: a massa personalizada, hiperindividualizada nos dados, mas absolutamente homogênea na ação. A inteligência artificial, então, não liberta — ela condiciona.
A Técnica como Campo de Guerra
Mas há outra face. Como qualquer elemento técnico, a IA pode ser apropriada pelos vencidos, pelos excluídos, pelos subterrâneos do sistema. A técnica é sempre ambígua: ela pode ser instrumento de dominação, mas também campo de guerra e de invenção.
Imagine uma IA construída por comunidades tradicionais, para mapear seus territórios ameaçados. Ou uma IA indígena, que codifique saberes ancestrais para proteger florestas. Ou uma IA da periferia, para organizar coletivos e resistir ao controle policial.
A técnica não é em si má. O que a define é a intenção que a mobiliza e o poder que a sustenta. Enquanto dominada pelo capital, a IA será instrumento de exclusão. Mas nas mãos do povo, poderá se tornar ferramenta de libertação, de reterritorialização do saber e de reconstrução dos espaços de vida.
Por Uma Outra Inteligência Artificial
Assim como Santos defendeu "outra globalização", é preciso hoje defender outra inteligência artificial. Uma IA que:
- sirva à vida cotidiana, e não à acumulação;
- fortaleça práticas locais, e não a homogeneização global;
- seja transparente, e não opaca;
- seja coletiva, e não proprietária.
Uma IA que pense junto com os povos, e não pelos povos. Que ajude a ampliar o campo da imaginação e da solidariedade, e não a reduzir o mundo a um mosaico de preferências previsíveis.
Conclusão
A inteligência artificial, como toda técnica, é um espelho do mundo. O modo como a utilizamos diz mais sobre nós do que sobre ela. No atual estágio do capitalismo global, ela tem sido usada para reforçar hierarquias, disciplinar espaços e silenciar resistências.
Mas não há técnica definitiva. Há sempre brechas, ruídos, fissuras. E é nelas que devemos agir.
A inteligência artificial não deve ser apenas entendida — deve ser disputada. Pois enquanto o capital sonha com um mundo automatizado, nós ainda podemos sonhar com um mundo justo, plural e solidário — inclusive nos circuitos digitais.
Escrito em homenagem e fidelidade ao pensamento geográfico de Milton Santos.
André Melo
Mestre em Geografia pela UFMS
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